No dia 9 de junho, celebramos a memória litúrgica de São José de Anchieta, Apóstolo do Brasil e, juntamente com Nossa Senhora da Conceição Aparecida, é também padroeiro do Brasil.
Os santos são para a Igreja Católica um exemplo para a vivência da fé e da vocação cristã. Santos porque souberam entregar tudo a Deus. Sempre há algo da virtude, da atitude e da atividade dessas pessoas que, ultrapassando o contexto histórico em que viveram, pode ser uma referência e inspiração para viver o tempo presente com aquilo que a vida exige de todos, a saber, a coragem.
Há mais de um ano o mundo vive as imensas dificuldades da pandemia da Covid-19 e chora os milhões de mortos, consequência do vírus letal e de políticas públicas equivocadas que desprezam por completo o dom e o respeito pela vida humana. Anchieta, como os demais jesuítas que, por primeiro, estiveram nessa terra do novo mundo enfrentaram todo tipo de dificuldade, incluindo, enfermidades que tiraram a vida de inúmeras pessoas, sobretudo, dos mais vulneráveis socialmente. A sua escolha em ajudar incansavelmente às pessoas pode inspirar um modo de viver e atitudes que correspondam à nossa fé e são dela exigências. Vale lembrar que Anchieta veio ao Brasil, depois de dois anos de noviciado, em Coimbra, acometido de uma enfermidade que provocou o deslocamento da espinha dorsal e que lhe causava dores horríveis. Em 1553, embarcou para o Brasil na esquadra de D. Duarte da Costa. Era uma prova para ver se resistiria à dureza da missão nessa nova terra.
Numa carta datada de 1 de junho de 1560 ao Pe. Diogo Laínez, então Prepósito Geral da Companhia de Jesus, Anchieta escreve:
“De muitos poderia contar, sobretudo escravos, de entre os quais uns morrem pouco tempo depois de serem batizados; outros que, batizados há mais tempo, depois de fazerem a confissão, partem ao encontro do Senhor. Por isso, andamos quase sem parar visitando várias povoações, tanto de índios como de portugueses, sem ter em conta calores, chuvas ou grandes enchentes de rios; e muitas vezes de noite, por bosques muito escuros, socorremos os enfermos não sem grande trabalho, quer por causa das asperezas dos caminhos, quer pela incomodidade do tempo, sobretudo sendo tantas estas povoações e tão longe umas das outras, que não somos bastantes para acudir a tão diversas necessidades urgentes e, ainda que fôssemos muitos mais, mesmo assim não seríamos suficientes. Além disso, ao socorrermos as necessidades dos outros, muitas vezes nós mesmos sofremos indisposições e desfalecemos no caminho, fatigados de dores, de tal modo que dificilmente podemos chegar ao destino. Deste modo, não parecem ter menos necessidade de ajuda os médicos que os próprios enfermos. Mas nada é árduo para aqueles que procuram unicamente a honra de Deus e a salvação das almas, pelas quais não duvidarão dar a vida. Muitas vezes nos levantamos do sono para socorrer os doentes e os moribundos…”.
A doutrina é indispensável para balizar o conteúdo e a profissão de fé, mas ela não é mais importante que a vida. Os jesuítas, sem deixarem de ser fiéis à fé da Igreja, se preocuparam, sobretudo, com a vida e o mundo das pessoas, a ponto de serem criticados como sendo “amigos do mundo”. Na carta supracitada, Anchieta descreve um cenário de extrema dificuldade em que a morte não somente ameaça, mas faz vítimas e o engajamento dos padres e irmãos da Companhia de Jesus em socorrer as imensas demandas às quais, não obstante o esforço gigantesco, eles não conseguem responder adequadamente às solicitações, pois o contingente humano, as dificuldades de ordem geográficas, as limitações físicas dos missionários exauridos pelo trabalho impossibilitavam o socorro de tantas necessidades. Os jesuítas também abriram boticas, uma das quais em São Paulo, no Pateo do Collegio, com o intuito de produzir os medicamentos naturais capazes de combater as mais diversas enfermidades. Certamente, o trabalho incansável dos primeiros jesuítas, sua doação sem limites, a ciência das coisas, a criatividade e a solidariedade puderam salvar muitas vidas. Eles não pensavam em si mesmos, mas se ocupavam com a honra de Deus e o bem das pessoas, preservando e promovendo a vida. Eles compreenderam, grosso modo, a máxima de Santo Inácio: “Cada qual esteja convencido de que tanto mais progredirá em todas as coisas espirituais, quanto mais se libertar do seu amor-próprio, vontade e interesse” (EE. 189).
Na audiência geral de 9 de setembro de 2020, o Papa Francisco disse: “a crise que estamos a viver devido à pandemia atinge todos; podemos sair dela melhores se todos juntos procurarmos o bem comum; caso contrário sairemos piores. Infelizmente, estamos assistindo ao surgimento de interesses particulares. Por exemplo, há quem deseje apropriar-se de possíveis soluções, como no caso das vacinas e depois vendê-las aos outros. Algumas pessoas aproveitam-se da situação para fomentar divisões: para procurar vantagens econômicas ou políticas, gerando ou aumentando os conflitos. Outros simplesmente não se importam com o sofrimento dos outros, passam adiante e seguem o seu caminho (cf. Lc 10, 30-32). São os devotos de Pôncio Pilatos, lavam as mãos.
A resposta cristã à pandemia e às consequentes crises socioeconômicas baseia-se no amor, antes de tudo, no amor de Deus que sempre nos precede (cf. 1 Jo 4, 19). (…) O verdadeiro amor, que nos torna fecundos e livres, é sempre expansivo e inclusivo. Este amor cuida, cura e faz bem”.
É esse amor pelo ser humano que levou São José de Anchieta e os seus companheiros jesuítas a socorrerem as pessoas. Sem solidariedade, sem compromisso com a vida humana não haverá vitória sobre essa e outras pandemias. Sem vencer a pandemia do vírus letal do egoísmo que impede a pessoa de sair de si mesma, nós não venceremos a pandemia da Covid-19 e da fome que mata diariamente milhares de pessoas.
O tempo que nós vivemos requer resiliência. É uma graça a ser pedida a Deus. A resiliência é a capacidade de reagir às dificuldades; ela é nutrida pelo empenho, pelo controle e autocontrole, e pela capacidade de enfrentar os desafios da existência humana. Não nos acomodemos. É necessário uma atitude proativa, como a de Nóbrega, Anchieta e outros tantos jesuítas que nos precederam nesta terra brasilis. Um dos grandes inimigos da vida humana é a passividade, isto é, sofrer os acontecimentos sem reagir. Santo Inácio recomenda o “agir contra”. Anchieta é, nisso, um exemplo para todos nós.
São José de Anchieta interceda junto a Deus por nós!
Pe. Carlos A. Contieri, SJ
Fonte: Jesuítas Brasil